Personagem central do romance semipóstumo de Eça de Queirós, A ilustre casa de Ramires (1900). Para além de ser conhecido pelo nome próprio, Gonçalo é designado também, “naquela sua velha aldeia de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, (…) [como] «Fidalgo da Torre»” (Queirós, 1999: 73). Remete-se, deste modo, logo no incipit, para um determinado espaço e para uma condição social confirmada na caracterização inicial.
Nela, o discurso do narrador começa por atentar na personagem, mas desloca-se de imediato para dois campos que lhe estão associados: a família e a História em que ela se inscreve. Assim, “Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal” (74). Logo depois, recorre-se a um dispositivo de figuração usual na ficção queirosiana, a analepse: “Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão” (74).
Depois disto, o narrador centra-se na família e descreve os feitos dos Ramires, “em cada lance forte da História de Portugal” (74), particularizando quatro etapas históricas: a da independência e consolidação do Reino, a da expansão, a dos Filipes e a da Restauração, com os Braganças, quando se anuncia a decadência: “Já, porém, como a nação, degenera a nobre raça…” (76). Por fim, chega-se ao protagonista: “Gonçalo, esse, era bacharel formado com um R no terceiro ano” (77).
A partir daqui, a personagem é configurada em função de comportamentos. Nessa “figuração poliédrica”, “é através do que Gonçalo vê, faz, diz, pensa e até sonha que vai ganhando um vulto ficcional onde o riso, mas também a complacência e até a ternura, estão muito presentes” (Monteiro, 2014: 24). Outros traços de caracterização: a ociosidade e a inércia, uma certa debilidade anímica, em contraste com os Ramires do passado, o apelo da temática histórica, traduzido na composição de um conto com “final choroso” (78), a abulia cortada por assomos de generosidade e de chamamento para a escrita.
A escrita da novela constitui um domínio decisivo para a figuração da personagem, por três razões. Primeiro, porque, ao longo desse processo, Gonçalo evolui, repensa a sua vida e o seu legado histórico, com efeitos na interação com as restantes personagens (veja-se a crescente tomada de consciência de um poder simbólico provindo do passado, relativamente ao poder político representado por André Cavaleiro). Segundo, porque a escrita da novela desencadeia reflexões acerca desse processo propriamente dito, enquanto trabalho e técnica (o tratamento das fontes, o trauma do plágio, o árduo labor estilístico, a expectativa da receção pelo público, etc.; cf. Reis, 1999: 181-183), tudo isto conferindo à escrita o poder de transformar quem a empreende (cf. Bittencourt, 2017: 222-228). Terceiro, porque o passado que emerge da “Torre de D. Ramires” deixa de ser uma mera evocação literária; progressivamente, esse passado interpela Gonçalo e o seu tempo, no tocante a uma certa falência de valores, na vida de um fidalgo em crise e de uma família em decadência.
Para bem se entender a relevância deste último aspeto (crucial, quanto à definição da personagem), importa ter em atenção alguns componentes da novela histórica e da função que ela desempenha no romance. Antes de mais, sublinhe-se que a decisão de escrever uma novela não decorre, em Gonçalo, do desinteressado impulso para a criação literária; trata-se da resposta a um desafio de José Lúcio Castanheiro e da adesão a uma lógica de legitimação bem diferente de atitudes e valores do passado. Diz Castanheiro: “Pois, amigo, de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento! A pena agora, como a espada outrora, edifica reinos…” (Queirós, 1999: 84).
Confirmando esta filosofia, o incipit do romance diz: “Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de junho, o Fidalgo da Torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita cor de rosa, trabalhava” (73). Este trabalho não corresponde à ocupação dominante dos avoengos (a guerra, a defesa da honra) e nem ao desempenho de uma profissão (médico, engenheiro, etc.); ele fixa-se numa área (a escrita literária) com suposto poder simbólico e sem retorno económico. “Está claro,” esclarece o Castanheiro, “os Anais por ora não podem pagar. Também, você não precisa!” (84). Depois disto, vai-se reconstituindo um mundo que, para Gonçalo, estava esquecido.
Trata-se, então, de recuperar uma história enquadrada pelo conflito de D. Afonso II com as Infantas, suas irmãs, na sequência da morte de D. Sancho. Deste, era Tructesindo Ramires “colaço e Alferes-Mor, por ele armado cavaleiro em Lorvão” (122) e estava obrigado, por juramento, à defesa das Infantas. Depois, a história desvia-se para o conflito dos Ramires com Lopo de Baião, o Bastardo; a morte de Lourenço Ramires e a vingativa execução do Bastardo são os lances finais de uma ação decorrida em espaços familiares a Gonçalo, no seu presente de escritor. Essa comunhão de espaços, aliada à evocação do passado da família favorece a interação entre os dois níveis narrativos do romance: o da história do Fidalgo da Torre e o do passado que ele relata.
Deste modo, Gonçalo confronta-se, às vezes dramaticamente, com valores do passado: a lealdade que obriga ao cumprimento da palavra dada, a bastardia entendida como degradação da casta, a vingança como obrigatória reparação da honra ferida. Em muitos aspetos, certos comportamentos pusilânimes e mesmo desleais de Gonçalo contrastam com esses valores e denegam a fidelidade aos pergaminhos de um nome histórico que se arrisca a ser abastardado pelos interesseiros compromissos com os poderes fácticos do presente. Um sonho reconduz o protagonista ao dramático encontro com os seus antepassados: “Eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós históricos, que (…) formavam em torno do seu leito, do leito em que ele nascera, como a assembleia majestosa da sua raça ressurgida” (380); a pergunta retórica que encerra o episódio (“Oh Avós, de que me servem as vossas armas – se me falta a vossa alma?…”; 382) vale como reconhecimento de uma fraqueza aparentemente irreversível e como ponto de partida para a regeneração possível, num tempo que já não comporta os costumes rígidos e às vezes bárbaros de Tructesindo.
Vencida uma eleição que supostamente o conduzirá à esfera do poder, Gonçalo Mendes Ramires, pouco depois de instalado em Lisboa, surpreende todos e parte: “Silenciosamente, quase misteriosamente, arranjara a concessão de um vasto prazo de Macheque, na Zambézia, hipotecara a sua quinta histórica de Treixedo, e embarcava em começos de junho no paquete Portugal, com o Bento, para a África” (443).
Aquela partida é um dos gestos que mais expressivamente evocam, em movimento extensional, a ligação da personagem a sentidos sociais e ideológicos que o romance justifica. Desde logo, a opção africana aparenta responder à menorizada posição portuguesa no redesenho de um mapa de poderes consideravelmente refeito, a partir da Conferência de Berlim (1884-85), em prejuízo de Portugal e da sua presença em África; o nome do paquete em que Gonçalo viaja e o seu regresso, com cabedais para restaurar o seu património – “tudo já dinheiro de África” (453), nota o Titó –, parecem apontar no sentido de uma política colonial pró-ativa e regeneradora. Ao mesmo tempo, a relação de Gonçalo com o passado histórico, mesmo com hesitações, sugere uma dinâmica de superação desse passado: ele deveria ser um motivo de responsabilização histórica, mas não um pretexto para a contemplação passiva do medieval pitoresco. No quadro da sua relação com a História (cf. Reis, 1999: 103-115), Eça contestava essa visão passiva que algum romantismo cultivara e que o tradicionalismo finissecular reiterava (veja-se a carta de Eça a Alberto de Oliveira, de 6 de agosto de 1894).
Por fim, resta comentar a possibilidade de, no plano da alegoria, identificarmos Gonçalo com Portugal. É João Gouveia quem propõe essa identificação, na síntese em que descreve “aquele todo de Gonçalo” (Queirós, 1999: 455), incluindo as suas contradições, “assim todo completo, com o bem, com o mal” (456). A tese fica indemonstrada, por duas razões, uma interna, outra externa. Internamente, por se tratar da palavra de uma personagem, com as limitações que isso implica, e não do juízo conclusivo do narrador (como no final d’O crime do padre Amaro); por outro lado, convém recordar que Eça não completou a revisão deste seu romance, razão suplementar para considerarmos aquela conclusão uma hipótese interpretativa em aberto.
Gonçalo Mendes Ramires e a novela histórica foram objeto de várias representações transmediáticas. Registe-se, na banda desenhada, a versão de E.T. Coelho, em O Mosquito (nºs 1112 a 1156, 1950; reedição Futura, 1989); na rádio, uma adaptação em 23 episódios, por Odette de Saint Maurice (Emissora Nacional, 1967 e 1970); no teatro, a recriação dramatúrgica A ilustre Casa, por António Torrado (ed. Teatro do Noroeste, 1996). Por sua vez, Adolfo Simões Müller incutiu autonomia a Gonçalo, como autor d’A Torre de D. Ramires (ed. Difel, 1987), com montagem do texto da novela; procedimento semelhante foi levado a cabo por Lacerda Editores: A Torre de D. Ramires, “por Gonçalo Mendes Ramires (Eça de Queiroz)”, em 1997.
Referências
BITTENCOURT, Rodrigo do Prado (2017). Sobre livros impossíveis: quatro personagens escritores na obra de Eça de Queirós. Tese de doutoramento. Coimbra: FLUC, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/39150 (acedido a 23/05/2020).
MONTEIRO, Ofélia Paiva (2014). “A figuração 'problematizadora' de Gonçalo Ramires”, Revista de Estudos Literários. 4: 15-42. Disponível https://impactum-journals.uc.pt/rel/article/view/2183-847X_4_1 (acedido a 22/05/2020).
QUEIRÓS, Eça de (1999). A ilustre casa de Ramires. Edição de Elena Losada Soler. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
REIS, Carlos (1999). Estudos Queirosianos: ensaios sobre Eça de Queirós e a sua obra. Lisboa: Ed. Presença.
[publicado a 25-05-2020]